‘Muro da vergonha’ na Maré: O apartheid no país em que se diz democrático
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‘Muro da vergonha’ na Maré: O apartheid no país em que se diz democrático

África do Sul, Brasil e Palestina: O apartheid é mundial quando se fala em formas de controle das populações não brancas, quando se fala em interesse por terras. É uma briga de supremacia étnica e territorial.

 

 

Mais de 20 milhões de reais foram gastos com o ‘Muro da Vergonha’ construído em 2009 pela Prefeitura do Rio de Janeiro. O muro foi construído em torno do Conjunto de Favelas da Maré, localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro. A Maré tem 16 favelas, mais de 132 mil moradores e está próximo a um dos principais aeroportos do país, o Aeroporto Tom Jobim, conhecido como Galeão. É ele o principal aeroporto de entrada dos estrangeiros que vêm conhecer a cidade do Rio de Janeiro, conhecido por seus cartões postais.

Para além da Maré, outras favelas da Zona Sul também receberam muros. Os muros apareceram quando o Rio de Janeiro passou a ser sede dos grandes eventos esportivos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, entre outros megaeventos que foram realizados nos últimos dez anos no Rio e em todo o Brasil.

O muro, chamado pelos governantes de ‘Barreira Acústica’, foi intitulado pelos moradores da Maré de ‘Muro da Vergonha’. Em 2009, 2010 e 2011 alguns protestos, vídeos, entrevistas, matérias, artigos e uma carta aos governantes foram feitos como forma de campanha contra a construção do Muro que separa a favela da Maré da avenida de carro que se chama Linha Vermelha, principal via de acesso para quem sai do aeroporto. Mas, como de costume, os protestos foram ignorados e, as autoridades da época, relataram que ele serviria para “proteger os nossos ouvidos do barulhos dos carros da avenida”.

Um dos grandes questionamentos da época feito pelos moradores é se era realmente o barulho dos carros que incomodam o dia a dia dos moradores, e não o barulho dos tiros vindos dos caveirões, carros blindados usados por a polícia militar que os próprios governantes usam para invadir as ruas da favela e matar mais pobres, negros e favelados.

Lembro que os governantes da época ainda fizeram um concurso dentro das escolas públicas para usar desenhos das crianças da Maré nos muros. É perverso como eles utilizam as crianças numa tentativa de construir um falso sentimento de pertencimento com esse muro ao ver os seus desenhos alí. A construção do muro ainda prejudicou a circulação dos ambulantes que costumam vender água e doces na avenida.

Em 2016, próximo das Olimpíadas, outra surpresa, mais gastos com o ‘Muro da Vergonha’ em um momento em que os governantes do Rio de Janeiro decretaram falência em todos os serviços públicos. Eles gastaram cerca de 750 mil reais para envelopar os mesmos muros.

Sempre esteve explícito que a construção do muro seria mais uma forma de separar a cidade entre ricos e pobres, entre asfalto e favela, uma cidade que não inclui a favela como parte da cidade, que não reconhece o empobrecimento de uma população favelada, em sua maioria, negra. A construção deste muro representa mais uma forma de racismo, de apartheid, ele exclui e atrapalha o dia a dia dos moradores mais pobres da cidade.

 

‘Muro da Vergonha’ na Palestina: A democracia para alguns, feita em cima da segregação de muitos.

Em junho deste ano fui à Palestina a convite das organizações israelenses Hamushim e a Coalizão de Mulheres pela Paz, além do Comitê Nacional Palestino pelo Boicote, Desinvestimento e Sanções a Israel (BNC) e a campanha “Stop the Wall”.
Logo quando vi o ‘Muro da Vergonha’ na Palestina, lembrei do ‘Muro da Vergonha’ da Maré, assim como dos bantustões, as enclaves criados pelo regime de apartheid na África do Sul segregando e proibindo a circulação da população negra em seu próprio território.

Ao percorrer a Cisjordânia, conheci famílias que tiveram suas raízes separadas pelo Muro da Vergonha, chamado por Israel de ‘Barreira de Segurança’. Vi cidades cortadas por um muro, tapumes, grades e cercas ao longo de mais de 650 quilômetros dentro dos territórios ocupados palestinos, às vezes há muitos quilômetros de distância da Linha Verde (a linha de armistício de 1948 que delimita a Cisjordânia). Com isso, o traçado da barreira, Israel se apoderou de mais de 12% do território da Cisjordânia. Ali estão muitas vidas e muitas histórias que foram e estão sendo segregadas por causa de interesses dos colonos israelenses.

As formas de controle da população palestina são muitas: postos de controle militar, torres de vigilância, além das estradas do apartheid (segregadas por critérios étnico-raciais) e do ‘Muro da Vergonha’ que fragmentam toda a Cisjordânia em pequenos enclaves onde estão concentradas as comunidades palestinas. A terra e a água ficam além do muro, tomadas pelo empreendimento colonial de Israel. As colônias israelenses irregulares têm hoje todos os serviços: água e livre acesso a tudo, além das estradas em que somente colonos e israelenses podem passar.

O Muro do Apartheid na Palestina é parte de um projeto de colonização de terras e de expulsão da população palestina que vive ali há gerações. Um projeto que vem se desenvolvendo há mais de 60 anos, e que já tornou mais da metade da população palestina refugiadas.  

Muitos palestinos tiveram que abandonar suas casas próximas aos muros porque a vida local ficou insustentável por terem as principais vias fechadas pelo muro; até mesmo a ida aos hospitais e às escolas virou um risco de vida para quem tenta atravessar as fronteiras, muitos nesta tentativa de sair são até presos. O comércio em vários locais não funciona mais, pois muitas das ruas principais de comércio foram fechadas pelos muros; circulação dos transportes não existe mais, pois há a separação de ônibus e carros palestinos, todos eles proibidos de circularem em espaços fora do muro.

É importante também mostrar que por trás desses muros existem grandes empresas e governantes que lucram com o controle e com as prisões das vidas. No Muro do Apartheid da Palestina foram gastos até hoje mais de 2.6 bilhões de dólares e os valores crescem cada dia mais. A Elbit Systems e a Israeli Aerospace Industries, como também a estadunidense Hewlett Packard e a Mexicana Cemex são umas das grandes multinacionais que estão ganhando dinheiro com isso.

Empresas como estas vão propagando essas formas de construções pelo mundo conseguindo contratos com governantes de inúmeros países. Um exemplo é a empresa de ‘segurança’ israelense ISDS, ela conseguiu firmar grandes contratos com o Brasil na época da realização das Olimpíadas. Os próprios diretores desta empresa israelense afirmaram que a polícia do Rio utiliza agora “os mesmos métodos que nós utilizamos em Gaza”.

Os muros de lá e cá, assim como foi o apartheid na África do Sul, são uma questão ideológica, de supremacia étnica, uma forma de controle migratório, de militarização e gentrificação dos nossos espaços. As empresas e os governantes importam controle, armas, caveirões. Eles importam e exportam terrorismo com as vidas que eles empobrecem em nome do grande capital e das suas buscas por terras. Enquanto isso, nós resistiremos juntas e juntos!

 

Gizele Martins é moradora da Favela da Maré, jornalista, comunicadora comunitária, integrante dos movimentos de favelas do Rio de Janeiro e pesquisa periferias urbanas.