Brasil, Mercosul e a moral seletiva nos negócios com Israel
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Brasil, Mercosul e a moral seletiva nos negócios com Israel

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Uma qualidade essencial aos ativistas Palestinos é o agudo senso de ironia. Para se ter uma ideia, as políticas recomendadas pela cartilha da Organização Mundial do Comércio (OMC) são denunciadas por movimentos sociais de todo o mundo por conta dos ataques às soberanias política, econômica, cultural, e até mesmo alimentar dos povos. A Palestina é, possivelmente, o único lugar onde a situação é tão calamitosa que a implementação das normas da OMC seria um progresso. No entanto, na Palestina ocupada, até mesmo essas regras são desrespeitadas.

 

Após a bem-sucedida campanha do Brasil para nomear Roberto Azevedo como diretor-geral da OMC, surge a oportunidade para a discussão das relações comerciais do mundo – e do Brasil – com Israel.

Israel é constantemente isentado do cumprimento de leis e regulamentos acordados internacionalmente. Por essa razão, os países que toleram essa situação contribuem diretamente para continuidade das graves violações dos mais elementares princípios de direitos humanos, bem como das normas de direito internacional na Palestina.

 

Israel – a exceção

 

Um dos pilares básicos das normas comerciais da OMC são as regras de origem. Embora os detalhes dos termos sigam em debate, há um consenso fundamental entre os países participantes: o de que o regime de comércio mundial entraria em colapso caso ocorra impunidade para Estados que comercializam produtos oriundos de outros países como se fossem seus.

 

Apesar desse entendimento, existe uma única exceção permitida: a exportação israelense de produtos total ou parcialmente produzidos nos assentamentos ilegalmente construídos em território Palestino ocupado como “Made in Israel”.

 

Esses produtos entram no mercado brasileiro livres de imposto no âmbito do Tratado de Livre Comércio (TLC) Mercosul-Israel, o qual foi ratificado pelo Brasil em 2010. Tal medida entrou em choque com a recomendação da comissão parlamentar para que a ratificação do TLC fosse suspenso até que um Estado palestino, demarcado dentro das fronteiras de 1967, fosse criado. Para apaziguar os protestos, no decreto de ratificação do TLC, o Brasil assinalou uma obviedade – a exclusão de produtos oriundos dos assentamentos ilegais do tratado. Contudo, nem mesmo essa exclusão acontece. Ainda que até 30% da produção israelense venha dos assentamentos, as autoridades aduaneiras não encontraram qualquer “dúvida razoável” para investigar e, com isso, o tratado é violado diariamente por autoridades brasileiras, do Mercosul e de Israel.

 

Além da discussão técnica no âmbito comercial, o que realmente precisa ser abordado é o fato de que o atual comportamento comercial do Brasil contribui para as graves violações dos direitos humanos e das normas do direito internacional na Palestina.

 

Financiando a ocupação israelense

 

Israel não seria capaz de continuar com suas onerosas políticas de ocupação, colonização e apartheid na Palestina, se estas não fossem economicamente viáveis. Os assentamentos e o Muro levantado ilegalmente ao redor das aldeias palestinas, para confiscar suas terras, não teriam sido construídos e mantidos sem as empresas que fazem este trabalho. Sob a perspectiva do direito internacional, todos aqueles que contribuem para a viabilidade financeira e material dessas políticas israelenses estão envolvidos em uma situação de cumplicidade.

 

Para evitar isso, os Estados estão legalmente obrigados a não dar reconhecimento, ajuda ou assistência a graves violações de cláusulas pétreas do direito internacional ou à manutenção de situações criadas por estas. O comércio com produtos dos assentamentos é, portanto, ilegal e deveria ser proibido. Também os contratos e relações comerciais com empresas envolvidas nas violações da lei internacional por parte de Israel implicam riscos legais.

 

Apesar disso, a empresa Ahava vende seus cosméticos em todo Brasil, embora sua fábrica esteja localizada em um assentamento ilegal na Cisjordânia e explore ilegalmente os recursos naturais do território ocupado. A campanha global “Beleza Roubada” é ativa em dezenas de países ao redor do mundo, e através de protestos e piquetes nas lojas já fez avanços significativos para interromper as vendas destes produtos. ASodastream, produzindo máquinas de refrigerante no assentamento ilegal de Maale Adumim na Cisjordânia, já em 2010 foi proibida pelo Tribunal Europeu de exportar seus produtos como “Made in Israel”, no entanto,começou a exportá-los para o Brasil logo após a ratificação do TLC.Mekorot, a companhia de água israelense, um agente vital nas políticas de roubo sistemático de água palestina para abastecimento dos assentamentos, tem contratos com a SABESP em São Paulo e CAESB em Brasília. Por fim, a empresa israelense Elbit, infame mundialmente por seu papel na construção do muro, acaba de ganhar um importante contrato com o governo do Rio Grande do Sul.

 

O Tratado de Livre Comércio com Israel agrava a situação. Mas, fora a necessidade urgente de o Mercosul suspender o TLC por falta de um mecanismo eficiente de exclusão das mercadorias provenientes dos assentamentos, esperamos que o Brasil e seus vizinhos concordem que esse acordo precisa ser suspenso por possuir um problema estrutural: não tem emenda por este TLC que o alinha com o dever do Brasil de não-assistência às violacões do direito internacional de Israel. Não se pode oferecer regalias comerciais a um país que sistematicamente comete crimes de guerra, implementa políticas de colonização e apartheid, ignora o direito à autodeterminação de um povo inteiro e o direito de retorno dos refugiados, os quais compõem a maioria dos palestinos.

 

A diplomacia seletiva

 

De acordo com o direito internacional, além do dever de não reconhecimento e não-assistência, os Estados têm a obrigação de promulgar medidas eficazes, incluindo sanções, para impedir violações de normas imperativas de direito internacional. No caso das Malvinas, o Mercosul já está implementando suas obrigações contra a colonização ilegal das ilhas pela Grã-Bretanha, proibindo aos navios que hasteiam a bandeira ilegal das “Falkland” de atracar em seus portos. Da mesma forma, não se concede qualquer assistência a navios que atuam na exploração ilegal dos recursos naturais das Ilhas.

 

Quando o Paraguai estava sofrendo um “golpe branco”, o Brasil liderou a decisão do Mercosul de suspender o país do próprio bloco comercial.

 

Por que, então, quando a Palestina está em causa, os Estados membros do Mercosul deixam de lado os princípios norteadores do bloco comercial, que inerentemente conectam os acordos comerciais e o desenvolvimento, à promoção dos direitos humanos, das liberdades fundamentais e da democracia?

 

O Brasil ainda assumiu uma série de compromissos políticos com o povo palestino e a comunidade internacional, aos quais estamos profundamente gratos, mas que, para que tenham um verdadeiro efeito sobre as vidas palestinas e a justiça, precisam ter algumas consequências básicas. O papel ativo que o Brasil tem desempenhado na ONU por conta da campanha mundial para o reconhecimento do Estado palestino nas fronteiras de 1967, deveria implicar o seu compromisso de não reconhecer ou apoiar a sustentabilidade econômica à política de colonização e limpeza étnica, praticada por Israel nos territórios ocupados após a invasão dessas fronteiras. Além disso, em março deste ano, o Brasil votou e apoiou ativamente a aprovação da resolução A/HRC/22/L.45 do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre o impacto do empreendimento de colonização israelense, o que exige de todos os Estados membros da ONU o respeito às obrigações de não reconhecimento e de não-assistência ao empreendimento dos assentamentos.

 

A lógica antieconomicista

 

Tais obrigações políticas, morais e legais são frequentemente deixadas de lado em nome do argumento de que direitos humanos não são critérios quando se elaboram estratégias de desenvolvimento. De acordo com esse discurso, assumir compromisso com os direitos humanos é considerado contraproducente ao “interesse coletivo”, um “entrave” ao progresso, uma vez que tais princípios não se aplicariam à realidade econômica. De alguma maneira, a coletividade prospera melhor uma vez que seus direitos más básicos são desconsideradas. Essa lógica faz com que até mesmo as regras da OMC sejam violadas e aplicadas de modo seletivo nas relações internacionais.

 

Tal entendimento é profundamente questionável do ponto de vista da ética, ainda assim, se aplicarmos uma análise puramente economicista, podemos observar o quão ilógica é a assinatura do TLC para os interesses do Mercosul.

 

As conversações do Mercosul com o Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) para o estabelecimento de um TLC sofreram um inesperado congelamento logo após a assinatura do acordo com Israel. Quem participou das negociações relata que isso tem relação direta com a opção por Israel. Perdeu-se um mercado de exportação multinacional, que possui um volume global de comércio 15 vezes maior que o israelense e que, embora não desfrute das mesmas isenções tributarias, tem um comércio com o Brasil 8 vezes maior do que Israel. Por outro lado, o saldo comercial nas transações econômicas entre Brasil e Estado de Israel encontra-se duas vezes mais negativo do que já o era em 2009.

 

Em suma, a relação comercial atual com Israel viola o direito comercial, os direitos humanos, os estatutos e as práticas do Mercosul, compromissos políticos do Brasil com o povo palestino e tem prejudicado as relações com outros parceiros comerciais. Além de tudo isso, Israel viola as disposições do próprio TLC a cada dia, exportando ilegalmente os produtos dos assentamentos.

 

A questão final é evidente: o que é preciso para simplesmente tratar Israel como se trataria qualquer outro país? Qual justificativa ética ou econômica impediria a imposição de sanções comerciais, a proibição dos produtos dos assentamentos ilegais bem como a suspensão dos negócios com empresas envolvidas com a ocupação e colonização israelense na Palestina?

 

O que impede a interrupção do Tratado de Livre Comércio com Israel até que esse país passe a respeitar o direito internacional?

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